Bibliografia: Boas, Franz. As limitações do método comparativo em Antropologia. In: “Boas, Franz. Antropologia Cultural. Org. Celso Castro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2004. 109p.”
Franz Boas nasceu em 9 de julho de 1858, em uma família judaica liberal. Não iniciou sua carreira científica na Antropologia, mas sim na Física, adquirindo o título de doutor nesta disciplina no ano 1881, quando tinha apenas 23 anos de idade. Sua inserção na Antropologia teve início a partir de uma viagem para Baffinland, onde vivenciou sua primeira experiência em campo, enquanto trabalhava com um grupo com esquimós, com o objetivo de desenvolver um livro sobre psicofísica. Em 1886, mudou-se para os Estados Unidos da América para ensinar na recém-fundada Universidade Clark, em Massachusetts, transferindo-se, em 1899, para a Universidade de Columbia, na cidade de Nova Iorque. Durante sua carreira, orientou grandes autores como Margaret Mead, Melville Herkovits, Ruth Benedict e o brasileiro Gilberto Freyre. Faleceu em Nova Iorque, no dia 21 de dezembro de 1942, aos 84 anos de idade, deixando um grande legado para esta ciência. Pai da Antropologia contemporânea, Boas foi pioneiro nas ideias de igualdade racial, contrapondo os evolucionistas, tão numerosos em sua época. Criticou o etnocentrismo, a linearidade evolutiva e os determinismos biológico e geográfico, dentre vários outros elementos e formulações.
O livro Antropologia Cultural é uma coletânea que traduz, para a língua portuguesa, cinco artigos retirados do livro “Race, Language and Culture”, organizado por Boas em 1940, que continha, em sua forma original, sessenta e dois textos que o autor julgava serem os mais representativos de sua carreira. Os textos escolhidos para o livro Antropologia Cultural são: “As limitações do método comparativo da Antropologia”, 1896 — cujo conteúdo é o objeto desta resenha; “Os métodos da etnologia”, 1920; “Alguns Problemas de Metodologia nas Ciências Sociais”, 1930; Raça e Progresso, 1931; e “Os Objetivos da Pesquisa Antropológica, 1932”.
“As limitações do método comparativo da Antropologia” é o texto base a parir do qual o autor construirá toda sua teoria posterior. Em cima dele, Boas criticou métodos antigos e sugeriu novas regras de aplicação para aquele método amplamente utilizado pela Antropologia em sua época: o método comparativo. Frustrado com os resultados pouco ou nada sólidos apresentados pelos utilizadores deste método, Boas opta pela segurança do método. Caso contrário, a Antropologia jamais fundaria suas bases como ciência séria e também compromissada com formulações imparciais. O objetivo do ilustre antropólogo é, portanto, pavimentar um caminho seguro para a Antropologia, cujas formulações comparativas, até aquele momento, ainda não haviam sido provadas.
Adentrando no texto, por vezes encontramos empregada a locução “leis gerais”. É muito importante compreender seu significado e sua importância. A Antropologia cresceu a ponto de poder quantificar grande parte da variedade de fenômenos étnicos e detectar que algumas sociedades compartilham alguns traços em comum. A existência destas semelhanças culturais em diversas partes leva a crer a existências de leis gerais que governam a mente humana e, por conseguinte, o desenvolvimento de suas sociedades. O papel da Antropologia é chegar à elucidação destas leis gerais, através da síntese de elementos teóricos e elementos coletados em campo, para que elas sejam utilizadas para orientar nossas ações em beneficio da humanidade. Possivelmente é essa a grande discussão deste texto — a de como chegar a estas leis gerais de maneira segura.
Uma das censuras que Boas faz ao uso do método comparativo, tal como ele estava sendo aplicado, é sobre a tendência a se considerar a linearidade da história da evolução humana. Em contraposição, nosso autor defende que, embora existam similaridades étnicas entre duas ou mais tribos, estas não são, necessariamente, oriundas das mesmas causas, que podem ser tanto internas, fundadas sobre condições psicológicas, quanto externas, baseadas no meio em que elas vivem. O autor assume, portanto, uma visão de evolução multilinear da história, entendendo que o mesmo fenômeno étnico pode surgir independentemente em diversas tribos por diferentes caminhos. O estudo antropológico deve ser direcionado no sentido de mostrar como tais fenômenos modificam essas “idéias elementares”. Um dos objetivos principais da pesquisa antropológica é, portanto, uma tentativa de descobrir os passos pelos quais certos estágios culturais se desenvolveram.
Embora Boas considere a influência de fatores externos, ele nega que as condições geográficas do meio sejam determinantes da cultura, considerando que similaridades culturais de povos que vivem sobre as mesmas condições poderiam ser mais bem explicadas pelo advento da difusão cultural. Não que a difusão cultural seja, para Boas, o elemento que necessariamente explique as similaridades culturais em todo globo terrestre, ou mesmo que as similaridades culturas entre povos vizinhos indiquem prova incontestável de conexão histórica — fique claro isso.
Na investigação das origens das “ideias universais” — as similaridades culturais —, assume-se que seria impossível chegar ao conhecimento das fontes últimas das ideias, invenções e costumes. Isso por razões bem práticas: primeiro, porque é impossível resgatar todos os conteúdos históricos em sua completude; segundo, porque formas culturais podem ser originais daquela tribo ou importadas de outras tribos; finalmente, porque elas podem ser oriundas de uma causa ou de várias.
O autor admite a incursão, em certa medida, da psicologia na análise das causas internas, mas crê que esta por si só seja capaz de elucidar todos os aspectos, pois alguns deles são demasiados obscuros para a compreensão através deste método. Insistir nele gera uma multiplicidade de hipóteses inventadas: este não é o objetivo da proposta boasiana.
Franz Boas define, então, as regras que o estudo antropológico deve seguir para atingir a galgada segurança. Primeiramente, a investigação detalhada de cada tribo deve ser preliminar a todos os estudos comparativos mais amplos. Além disso, a comparação deve se restringir a apenas os fenômenos que se provem ser efeito das mesmas causas. Portanto, é necessário provar a compatibilidade do material.
O método mais seguro para chegar às causas que formam a cultura e os seus processos psicológicos é o estudo detalhado de costumes em relação com a cultura total da tribo que as pratica, em conexão com uma investigação de sua distribuição geográfica entre tribos vizinhas. O resultado destas investigações pode ter sentido tríplice: revelam as condições ambientais que criaram ou modificaram os elementos culturais; ou esclarecem os fatores psicológicos que atuaram na configuração da cultura; ou mostram os efeitos das conexões históricas sobre o desenvolvimento da cultura.
Como já fora mencionado anteriormente, a investigação histórica, que abandonara a superficial suposição de origem comum dos fenômenos étnicos, deve ser o pré-requisito de qualquer comparação. As leis gerais só podem ser claramente formuladas em uma comparação completa dos modos pelos quais elas se tornam manifesta em diversas culturas. Este processo é indispensável para o progresso sólido da ciência, pois se trata, aqui, de um método legitimamente indutivo, no qual as comparações são testadas por este meio.
“As limitações do método comparativo da Antropologia” é um texto de leitura indispensável. Nenhuma resenha poderia jamais substituir a leitura do texto original em sua completude, sendo ele imprescindível à formação antropológica, tendo em consideração sua importância na formação desta ciência. Antropologia Cultural é um excelente livro, ele é o pagamento de uma verdadeira dívida que a antropologia brasileira tinha com o legado boasiano, dada a escassez de traduções para a língua portuguesa dos textos desse grande autor. A publicação desta obra viabilizou a maior utilização de textos de Boas nos cursos de graduação, que sem dúvida foram enriquecidos com esta conquista. Além disso, o livro é recomendado a todos que buscam lançar um olhar sobre a formação da Antropologia tal como ela é apresentada hoje.