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sábado, 8 de maio de 2010

Resenha — Franz Boas — As limitações do método comparativo em Antropologia.










Bibliografia: Boas, Franz. As limitações do método comparativo em Antropologia. In: “Boas, Franz. Antropologia Cultural. Org. Celso Castro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2004. 109p.”



Franz Boas nasceu em 9 de julho de 1858, em uma família judaica liberal. Não iniciou sua carreira científica na Antropologia, mas sim na Física, adquirindo o título de doutor nesta disciplina no ano 1881, quando tinha apenas 23 anos de idade. Sua inserção na Antropologia teve início a partir de uma viagem para Baffinland, onde vivenciou sua primeira experiência em campo, enquanto trabalhava com um grupo com esquimós, com o objetivo de desenvolver um livro sobre psicofísica. Em 1886, mudou-se para os Estados Unidos da América para ensinar na recém-fundada Universidade Clark, em Massachusetts, transferindo-se, em 1899, para a Universidade de Columbia, na cidade de Nova Iorque. Durante sua carreira, orientou grandes autores como Margaret Mead, Melville Herkovits, Ruth Benedict e o brasileiro Gilberto Freyre. Faleceu em Nova Iorque, no dia 21 de dezembro de 1942, aos 84 anos de idade, deixando um grande legado para esta ciência. Pai da Antropologia contemporânea, Boas foi pioneiro nas ideias de igualdade racial, contrapondo os evolucionistas, tão numerosos em sua época. Criticou o etnocentrismo, a linearidade evolutiva e os determinismos biológico e geográfico, dentre vários outros elementos e formulações.

O livro Antropologia Cultural é uma coletânea que traduz, para a língua portuguesa, cinco artigos retirados do livro Race, Language and Culture”, organizado por Boas em 1940, que continha, em sua forma original, sessenta e dois textos que o autor julgava serem os mais representativos de sua carreira. Os textos escolhidos para o livro Antropologia Cultural são: “As limitações do método comparativo da Antropologia”, 1896 — cujo conteúdo é o objeto desta resenha; Os métodos da etnologia”, 1920; Alguns Problemas de Metodologia nas Ciências Sociais”, 1930; Raça e Progresso, 1931; e “Os Objetivos da Pesquisa Antropológica, 1932.

As limitações do método comparativo da Antropologia” é o texto base a parir do qual o autor construirá toda sua teoria posterior. Em cima dele, Boas criticou métodos antigos e sugeriu novas regras de aplicação para aquele método amplamente utilizado pela Antropologia em sua época: o método comparativo. Frustrado com os resultados pouco ou nada sólidos apresentados pelos utilizadores deste método, Boas opta pela segurança do método. Caso contrário, a Antropologia jamais fundaria suas bases como ciência séria e também compromissada com formulações imparciais. O objetivo do ilustre antropólogo é, portanto, pavimentar um caminho seguro para a Antropologia, cujas formulações comparativas, até aquele momento, ainda não haviam sido provadas.

Adentrando no texto, por vezes encontramos empregada a locução “leis gerais”. É muito importante compreender seu significado e sua importância. A Antropologia cresceu a ponto de poder quantificar grande parte da variedade de fenômenos étnicos e detectar que algumas sociedades compartilham alguns traços em comum. A existência destas semelhanças culturais em diversas partes leva a crer a existências de leis gerais que governam a mente humana e, por conseguinte, o desenvolvimento de suas sociedades. O papel da Antropologia é chegar à elucidação destas leis gerais, através da síntese de elementos teóricos e elementos coletados em campo, para que elas sejam utilizadas para orientar nossas ações em beneficio da humanidade. Possivelmente é essa a grande discussão deste texto — a de como chegar a estas leis gerais de maneira segura.

Uma das censuras que Boas faz ao uso do método comparativo, tal como ele estava sendo aplicado, é sobre a tendência a se considerar a linearidade da história da evolução humana. Em contraposição, nosso autor defende que, embora existam similaridades étnicas entre duas ou mais tribos, estas não são, necessariamente, oriundas das mesmas causas, que podem ser tanto internas, fundadas sobre condições psicológicas, quanto externas, baseadas no meio em que elas vivem. O autor assume, portanto, uma visão de evolução multilinear da história, entendendo que o mesmo fenômeno étnico pode surgir independentemente em diversas tribos por diferentes caminhos. O estudo antropológico deve ser direcionado no sentido de mostrar como tais fenômenos modificam essas “idéias elementares”. Um dos objetivos principais da pesquisa antropológica é, portanto, uma tentativa de descobrir os passos pelos quais certos estágios culturais se desenvolveram.

Embora Boas considere a influência de fatores externos, ele nega que as condições geográficas do meio sejam determinantes da cultura, considerando que similaridades culturais de povos que vivem sobre as mesmas condições poderiam ser mais bem explicadas pelo advento da difusão cultural. Não que a difusão cultural seja, para Boas, o elemento que necessariamente explique as similaridades culturais em todo globo terrestre, ou mesmo que as similaridades culturas entre povos vizinhos indiquem prova incontestável de conexão histórica — fique claro isso.

Na investigação das origens das “ideias universais” — as similaridades culturais —, assume-se que seria impossível chegar ao conhecimento das fontes últimas das ideias, invenções e costumes. Isso por razões bem práticas: primeiro, porque é impossível resgatar todos os conteúdos históricos em sua completude; segundo, porque formas culturais podem ser originais daquela tribo ou importadas de outras tribos; finalmente, porque elas podem ser oriundas de uma causa ou de várias.

O autor admite a incursão, em certa medida, da psicologia na análise das causas internas, mas crê que esta por si só seja capaz de elucidar todos os aspectos, pois alguns deles são demasiados obscuros para a compreensão através deste método. Insistir nele gera uma multiplicidade de hipóteses inventadas: este não é o objetivo da proposta boasiana.

Franz Boas define, então, as regras que o estudo antropológico deve seguir para atingir a galgada segurança. Primeiramente, a investigação detalhada de cada tribo deve ser preliminar a todos os estudos comparativos mais amplos. Além disso, a comparação deve se restringir a apenas os fenômenos que se provem ser efeito das mesmas causas. Portanto, é necessário provar a compatibilidade do material.

O método mais seguro para chegar às causas que formam a cultura e os seus processos psicológicos é o estudo detalhado de costumes em relação com a cultura total da tribo que as pratica, em conexão com uma investigação de sua distribuição geográfica entre tribos vizinhas. O resultado destas investigações pode ter sentido tríplice: revelam as condições ambientais que criaram ou modificaram os elementos culturais; ou esclarecem os fatores psicológicos que atuaram na configuração da cultura; ou mostram os efeitos das conexões históricas sobre o desenvolvimento da cultura.

Como já fora mencionado anteriormente, a investigação histórica, que abandonara a superficial suposição de origem comum dos fenômenos étnicos, deve ser o pré-requisito de qualquer comparação. As leis gerais só podem ser claramente formuladas em uma comparação completa dos modos pelos quais elas se tornam manifesta em diversas culturas. Este processo é indispensável para o progresso sólido da ciência, pois se trata, aqui, de um método legitimamente indutivo, no qual as comparações são testadas por este meio.

“As limitações do método comparativo da Antropologia” é um texto de leitura indispensável. Nenhuma resenha poderia jamais substituir a leitura do texto original em sua completude, sendo ele imprescindível à formação antropológica, tendo em consideração sua importância na formação desta ciência. Antropologia Cultural é um excelente livro, ele é o pagamento de uma verdadeira dívida que a antropologia brasileira tinha com o legado boasiano, dada a escassez de traduções para a língua portuguesa dos textos desse grande autor. A publicação desta obra viabilizou a maior utilização de textos de Boas nos cursos de graduação, que sem dúvida foram enriquecidos com esta conquista. Além disso, o livro é recomendado a todos que buscam lançar um olhar sobre a formação da Antropologia tal como ela é apresentada hoje.

quarta-feira, 10 de março de 2010

Resenha - Benjamin Constant - Da liberdade dos antigos comparada à dos modernos

Benjamin Constant (1767-1830)



Todo o discurso de Constant recai sobre o dualismo entre a liberdade dos antigos e a liberdade dos modernos. O autor alega que cada uma é atribuída a determinado momento histórico; transplantá-las para fora de seus contextos seria um engano que poderia causar muitos males à nação. O autor, calvinista, se posiciona politicamente na esquerda-liberal.

Nota-se que Constant trabalha com dois elementos para caracterizar o conceito de liberdade: primeiro a liberdade individual, e enfim a liberdade política. Quando o autor se refere à liberdade dos modernos, ele leva em consideração o conceito de liberdade das grandes nações do capitalismo da época — a França, os Estados Unidos da América e a Inglaterra — e quando se refere à liberdade dos antigos ele cita Esparta, Atenas, Roma, dentre outros.

A liberdade moderna consiste no direito do indivíduo não se submeter a nada senão às leis; é o direito à propriedade privada; à liberdade de expressão; de ir e vir; tudo sem repreensão por efeito de uma vontade arbitrária de um ou vários indivíduos; em um vocabulário hobbesiano, é a liberdade sem coerção. Neste tipo de liberdade deve-se predominar a atividade política representativa, a soberania política dos indivíduos é restrita, podendo ser considerada uma suposição abstrata; a participação política dos cidadãos é indireta. Por outro lado, o indivíduo desfruta de uma liberdade privada exacerbada.

A liberdade dos antigos, por outro lado, consiste em exercer o pode político de maneira coletiva e direta, os cidadãos exercem influência real no poder. Este tipo de liberdade pressupõe, entretanto, a submissão sem reservas do indivíduo à autoridade do todo social, pois toda a ação privada está sobre constante do mesmo. Há, portanto, uma contradição: participação direta na política, contudo ínfima liberdade individual; o inverso da liberdade dos modernos.

Para demonstrar o porquê dessas diferenças, o autor descreve as nações modernas e os Estados antigos, ambos caracterizados sob a ótica de três aspectos: extensão territorial, atividade econômica e forma de trabalho.

Os estados Antigos eram territorialmente pequenos, portanto seus recursos eram insuficientes para suprir todas suas necessidades. Inevitavelmente, possuíam um espírito belicoso, pois era a única forma desses Estados obterem os recursos necessários para subsistirem, conseguindo aquilo que precisavam através da guerra. Existia, portanto, em estado de constante pressão e insegurança, os Estados atacavam-se com certa freqüência, a preocupação com a guerra era contínua, esta tensão impedia o florescimento do comércio. Da guerra eram extraídos escravos destinados ao penoso trabalho mecânico-braçal. A escravidão compunha um elemento importante à liberdade dos antigos, sem ela os cidadãos não teriam a disponibilidade de tempo que a atividade política exige.

As nações modernas, por outro lado, ocupam grandes extensões territoriais, impossibilitando que seus cidadãos se reúnam, assim como nos governos antigos, em praça pública para deliberarem sobre questões do Estado. O trabalho escravo está extinto neste período; a grande massa da população era composta por trabalhadores assalariados ou, em menor número, pelos detentores dos meios de produção — Constant aparentemente dialoga com este último. Não há tempo hábil, portanto, para o homem moderno concentrar-se integralmente na política do Estado. Devido a sua grande extensão, observam-se duas características: primeiro, a guerra nestas circunstâncias trariam mais custos que benefícios; segundo, em virtude disso, o comércio é o meio mais viável de conseguir recursos externos nos tempos modernos.

A guerra é, portanto, anterior ao comércio. Esta é uma crítica que Constant desfere aos políticos franceses que cultivavam o espírito de guerra; para o autor, a guerra é inteiramente incompatível com as nações modernas.

Em um ataque furioso de argumentos liberais, Constant defende firmemente o comércio, que, segundo ele é uma atividade feliz dos homens modernos, pois mergulhados em suas esperanças, expectativas e nas especulações de seus empreendimentos, os homens modernos não se sentiram bem frente à ociosidade idêntica à dos povos antigos.

O autor diz que “o comércio inspira aos homens um forte amor pela independência individual. O comércio atende suas necessidades, satisfaz seus desejos, sem intervenção da autoridade”. Constant critica severamente os Estados que intervêm na economia, “ todas as vezes que os governos pretendem realizar negócios, eles o fazem menos bem e com menos vantagens que nós [cidadãos]”.

Constant censura a Revolução Francesa, que não foi capaz de distinguir os dois tipos de liberdade. Mas, entende que os erros são justificáveis devido à ausência de uma base teórica que tivesse percebido estas alterações na noção de liberdade. Constant critica especialmente dois teóricos, a J.J. Rousseau e ao abade de Mably, que defendiam a extensão do poder das leis, as quais deveriam influenciar diretamente na vida privada do indivíduo; acreditavam, também, que tudo deveria ceder frente à vontade coletiva e que todas as restrições aos direitos individuais seriam largamente compensadas pela participação no poder social.

O próximo apontamento de Constant é sobre a natureza das instituições. As instituições livres sobreviveram, enquanto as antigas desmoronaram, pois eram instituições que feriam a liberdade individual nos tempos modernos.

O exílio político não faz mais sentido nas nações modernas, pois a participação do indivíduo na política já é bastante limitada frente a grande massa de influências. A transplantação dessa censura para outras esferas também deve ser evitada, caso que não ocorre, por exemplo, com a educação dada pelo Estado; para o autor cada indivíduo tem o direito de desenvolver suas próprias faculdades sem qualquer tipo de interferência.

Constant pondera que o comércio limita a arbitrariedade do governo sobre nossa existência, pois a propriedade é apenas usufruto, e o usufruto pode ser regulado pelo governo, mas a circulação põe um obstáculo invisível a isso. Além do mais, a circulação gera crédito, que torna a autoridade dependente.

A ultima discussão desse texto versa sobre a participação dos indivíduos modernos na política, o autor admite que o cidadão moderno frequentemente negligencie sua participação política. Como já discorrido, o moderno não possuem tempo hábil para exercer plena função política da mesma forma que os antigos, pois isso lhes custaria à liberdade individual, que é sagrada para o autor. Daí a necessidade do sistema representativo, que se constrói sobre a procuração dada a certo número de homens pela massa do povo, que deseja ter seus interesses defendidos e não tem, no entanto, tempo para defendê-los sozinho.

Os cidadãos de um governo com sistema representativo têm a obrigação de exercer constante vigilância sobre seus representantes e cabe-lhes o direito exclusivo de afastá-los, caso tenham traído suas promessas, assim como o direito de revogar os poderes dos quais eles tenham eventualmente cometidos excessos.

Para o autor, o grande risco do governo representativo é que os indivíduos possam negligenciar a política. Faz parte do esforço de alguns governantes para que isso seja efetivado e a participação política do indivíduo seja apenas funcional: pagar impostos e obedecer às leis.

Sem apresentar uma solução palpável, Constant apela para o sentimento de patriotismo, associando-o à necessidade de que os cidadãos exerçam sua atividade política.

Concluindo, Benjamin Constant faz um pequeno resumo de seus ideais: conciliar as instituições à liberdade dos modernos; extinguir a educação moral; e respeitar a liberdade individual dos cidadãos, sem, no entanto, excluir a população da atividade política.

Da liberdade dos antigos comparada a dos modernos é uma obra interessante, que vale a pena ser lida na íntegra. Como podemos perceber, ela carrega diversos aspectos ainda presentes no nosso século, sendo uma das obras fundadoras do Estado Moderno como o conhecemos. Do meu ponto de vista, apesar de sua análise ser parcial, dúbia pelos seus argumentos não muito trabalhados, é uma leitura fundamental pela atualidade de suas idéias.*



* Talvez eu elabore posteriormente as implicações das idéias do autor na atualidade em um adendo específico.

sábado, 19 de dezembro de 2009

Resenha crítica - Roy Lewis - Por que almocei meu pai



Neste livro, o jornalista e sociólogo, Roy Lewis, descreve anacronicamente a trajetória do homem-macaco africano durante o Pleistoceno, narrando de maneira cômica, com o típico humor inglês, a série de acontecimentos que levou aqueles indivíduos ao patamar tecnológico e social que consagrou-lhes como a espécie dominante na idade da pedra lascada.
Ernest é o personagem-narrador, que conta a história de sua horda, seu pai, Edward, é o personagem central da obra, líder da horda, e um verdadeiro visionário revolucionário cujo maior desejo é conduzir sua espécie à evolução, de forma a se tornarem legítimos homo-sapiens. Edward é inconsequente quanto ao preço de seu ideal, lança mão de quaisquer meios necessários para atingir seus objetivos, mesmo que os riscos sejam demasiadamente elevados e possam culminar em catástrofes naturais e sociais. Há uma analogia entre Edward e o Capitalismo, que supostamente (para Roy Lewis, com certeza) representa a evolução, pois busca insaciavelmente a geração de novas tecnologias e a superação de antigas técnicas, um aspecto dinâmico presente na sociedade contemporânea.
A dominação do fogo é um ponto de extrema relevância na trama, pois devido a uma combinação de fatores, possibilitou ao homem mais tempo livre para suas atividades tipicamente humanas: reflexão e introspecção. Roy Lewis, de maneira implícita, faz analogia à uma discussão pertinente à Antropologia: a reflexão sobre a Natureza e Cultura, pois o homem pós-fogo é protagonista de sua própria evolução, sendo o único ser vivo capaz de superar as imposições genéticas, portanto superar sua natureza, e agir de maneira racional e premeditada, ou seja, culturalmente.
As mudanças trazidas pela evolução da espécie também abarcam alterações na estrutura familiar, cada invenção disponibilizou recursos adicionais que permitiram a transformação da estrutura social. O conhecimento técnico-científico influi, portanto, na superestrutura da cultura.
Outro personagem de extrema importância é o irmão de Edward, o "Tio" Vanya, um reacionário que defende a volta dos homens-macado às árvores. Na trama, ele é definido como um homem-macaco rústico, de modos grosseiros, contraditório por desfrutar os benefícios das evoluções tecnológicas que tanto critica, inclusive existem diversos momentos em que Vanya desfere sua crítica a Edward ao mesmo instante em que está a utilizar os recursos tecnológicos que seu irmão conquistou. Para Vanya, a evolução socialmente construída não oferece à humanidade a legitima felicidade e levará-a, por consequencia, à extinção da espécie, pois não segue a evolução natural regida por leis mecânicas e seguras. Vanya é associado ao Socialismo. Percebe-se a posição ideológica do autor quando levado em consideração os adjetivos retrocitados referentes a este personagem. A narrativa é marcada por confrontos ideológicos entre Vanya e Edward, mas percebe-se que Vanya se mostra muito menos influente que Edward no que se refere ao rumo da horda.
Outras discussões atuais são postas por Roy Lewis de maneira implícita, como por exemplo um importante debate entre Ernest e Edward sobre o destino das tecnologias criadas, Edward, em favor da evolução, defendeu que elas deveriam ser livremente difundidas, de modo que as diversas hordas colaborem para a aceleração da evolução; Ernest, por outro lado, opõe-se a idéia do pai, inferindo que a posse de tecnologias deve ser base da soberania de uma horda sobre outra, além de ser fator que institui a divisão social do trabalho — ou internacional se pensarmos em hordas como sendo um simbolismo para nações. O que Ernest defende pode ser observado no capitalismo, que polariza o mundo entre os detentores e os não-detentores do conhecimento. Ernest alega que há perigos eminentes em se delegar tecnologias sensíveis a terceiros, que supostamente poderiam adotar este conhecimento para praticar atos perversos. Esta é uma clara alusão à tecnologia nuclear que florescia em plena corrida armamentista entre URSS e EUA na época em que o livro foi escrito.
Ernest é de certa forma um filósofo. Certa vez, refletiu sobre uma correlação existente entre o mundo dos sonhos e a vida após a morte: quando alguém morre, vai para o mundo dos sonhos, residência da verdadeira felicidade. Esta reflexão inaugura o animismo, que dota os seres de um ânima imortal e imutável. Pode se dizer que analogicamente Ernest é o precursor da filosofia e da religião.
Roy Lewis se inspira fortemente em Totem e Tabu, livro de Sigmund Freud, para definir a relação entre pai e filhos: Edward proíbe a relação incestuosa, alegando que é uma mudança necessária para a evolução da espécie. Assim como em Totem e Tabu, do ponto de vista psicológico, seus filhos sentem-se castrados pelo pai e impedidos de satisfazerem sua libido, a relação entre eles fica mais estreita. É a primeira manifestação do complexo de Édipo, que pressupõe o ódio pelo pai e o amor pela mãe.
Cansado da autocracia de seu pai, Ernest passa a odiar os excessos cometidos pelo líder da horda e, encorajado por sua esposa Griselda, que estabeleceu maliciosamente o elo entre o ódio de Ernest e o já pensado animismo, conspira para a morte do patriarca. Ernest alicia seus irmãos e, em um ato de violência coletiva, matam o pai. Após o parricídio, devoram o cadáver na tentativa de incorporação da potência daquele chefe autocrático que fora assassinado. Do intenso remorso, negam o parricídio e dão início a uma nova ordem social, na qual a ocupação do lugar do pai torna-se proibida. Edward é instituido como um símbolo, um Totem, e passa a ser idealizado pela horda e principalmente por seus filhos. Os frutos deste “pecado original” deram origem a moral, a religião e as organizações sociais.
O livro também trata de outras questões, como o papel das mulheres na sociedade, papel que se alterou com a evolução. As mulheres, que antes saiam para caçar junto com os homens, perderam esta função com as inovações tecnológicas, passaram a exercer um papel mais doméstico na distribuição das funções entre homens e mulheres: enquanto os homens saem a caçam, as mulheres cuidam dos filhos. Se por muitas vezes pode-se perceber o papel submisso da mulher perante o homem, em muitas outras nota-se seu caráter manipulador, como foi quando Griselda conduziu Edward ao fatídico desfeixe.
Por que almocei meu pai é um livro indicado para quem busca de uma leitura descontraída e repleta de conteúdo didático. É uma leitura fluente — os personagens são plenamente conscientes de sua condição e de seu nível de evolução, além disso, desenvolvem reflexões tão complexas quanto as nossas, conferindo alto teor de comicidade à obra. Este livro abrange diversos níveis de leituras e, portanto, é recomendado a todos que desejam lançar um olhar crítico sobre a formação da sociedade.