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sábado, 19 de dezembro de 2009

Resenha crítica - Roy Lewis - Por que almocei meu pai



Neste livro, o jornalista e sociólogo, Roy Lewis, descreve anacronicamente a trajetória do homem-macaco africano durante o Pleistoceno, narrando de maneira cômica, com o típico humor inglês, a série de acontecimentos que levou aqueles indivíduos ao patamar tecnológico e social que consagrou-lhes como a espécie dominante na idade da pedra lascada.
Ernest é o personagem-narrador, que conta a história de sua horda, seu pai, Edward, é o personagem central da obra, líder da horda, e um verdadeiro visionário revolucionário cujo maior desejo é conduzir sua espécie à evolução, de forma a se tornarem legítimos homo-sapiens. Edward é inconsequente quanto ao preço de seu ideal, lança mão de quaisquer meios necessários para atingir seus objetivos, mesmo que os riscos sejam demasiadamente elevados e possam culminar em catástrofes naturais e sociais. Há uma analogia entre Edward e o Capitalismo, que supostamente (para Roy Lewis, com certeza) representa a evolução, pois busca insaciavelmente a geração de novas tecnologias e a superação de antigas técnicas, um aspecto dinâmico presente na sociedade contemporânea.
A dominação do fogo é um ponto de extrema relevância na trama, pois devido a uma combinação de fatores, possibilitou ao homem mais tempo livre para suas atividades tipicamente humanas: reflexão e introspecção. Roy Lewis, de maneira implícita, faz analogia à uma discussão pertinente à Antropologia: a reflexão sobre a Natureza e Cultura, pois o homem pós-fogo é protagonista de sua própria evolução, sendo o único ser vivo capaz de superar as imposições genéticas, portanto superar sua natureza, e agir de maneira racional e premeditada, ou seja, culturalmente.
As mudanças trazidas pela evolução da espécie também abarcam alterações na estrutura familiar, cada invenção disponibilizou recursos adicionais que permitiram a transformação da estrutura social. O conhecimento técnico-científico influi, portanto, na superestrutura da cultura.
Outro personagem de extrema importância é o irmão de Edward, o "Tio" Vanya, um reacionário que defende a volta dos homens-macado às árvores. Na trama, ele é definido como um homem-macaco rústico, de modos grosseiros, contraditório por desfrutar os benefícios das evoluções tecnológicas que tanto critica, inclusive existem diversos momentos em que Vanya desfere sua crítica a Edward ao mesmo instante em que está a utilizar os recursos tecnológicos que seu irmão conquistou. Para Vanya, a evolução socialmente construída não oferece à humanidade a legitima felicidade e levará-a, por consequencia, à extinção da espécie, pois não segue a evolução natural regida por leis mecânicas e seguras. Vanya é associado ao Socialismo. Percebe-se a posição ideológica do autor quando levado em consideração os adjetivos retrocitados referentes a este personagem. A narrativa é marcada por confrontos ideológicos entre Vanya e Edward, mas percebe-se que Vanya se mostra muito menos influente que Edward no que se refere ao rumo da horda.
Outras discussões atuais são postas por Roy Lewis de maneira implícita, como por exemplo um importante debate entre Ernest e Edward sobre o destino das tecnologias criadas, Edward, em favor da evolução, defendeu que elas deveriam ser livremente difundidas, de modo que as diversas hordas colaborem para a aceleração da evolução; Ernest, por outro lado, opõe-se a idéia do pai, inferindo que a posse de tecnologias deve ser base da soberania de uma horda sobre outra, além de ser fator que institui a divisão social do trabalho — ou internacional se pensarmos em hordas como sendo um simbolismo para nações. O que Ernest defende pode ser observado no capitalismo, que polariza o mundo entre os detentores e os não-detentores do conhecimento. Ernest alega que há perigos eminentes em se delegar tecnologias sensíveis a terceiros, que supostamente poderiam adotar este conhecimento para praticar atos perversos. Esta é uma clara alusão à tecnologia nuclear que florescia em plena corrida armamentista entre URSS e EUA na época em que o livro foi escrito.
Ernest é de certa forma um filósofo. Certa vez, refletiu sobre uma correlação existente entre o mundo dos sonhos e a vida após a morte: quando alguém morre, vai para o mundo dos sonhos, residência da verdadeira felicidade. Esta reflexão inaugura o animismo, que dota os seres de um ânima imortal e imutável. Pode se dizer que analogicamente Ernest é o precursor da filosofia e da religião.
Roy Lewis se inspira fortemente em Totem e Tabu, livro de Sigmund Freud, para definir a relação entre pai e filhos: Edward proíbe a relação incestuosa, alegando que é uma mudança necessária para a evolução da espécie. Assim como em Totem e Tabu, do ponto de vista psicológico, seus filhos sentem-se castrados pelo pai e impedidos de satisfazerem sua libido, a relação entre eles fica mais estreita. É a primeira manifestação do complexo de Édipo, que pressupõe o ódio pelo pai e o amor pela mãe.
Cansado da autocracia de seu pai, Ernest passa a odiar os excessos cometidos pelo líder da horda e, encorajado por sua esposa Griselda, que estabeleceu maliciosamente o elo entre o ódio de Ernest e o já pensado animismo, conspira para a morte do patriarca. Ernest alicia seus irmãos e, em um ato de violência coletiva, matam o pai. Após o parricídio, devoram o cadáver na tentativa de incorporação da potência daquele chefe autocrático que fora assassinado. Do intenso remorso, negam o parricídio e dão início a uma nova ordem social, na qual a ocupação do lugar do pai torna-se proibida. Edward é instituido como um símbolo, um Totem, e passa a ser idealizado pela horda e principalmente por seus filhos. Os frutos deste “pecado original” deram origem a moral, a religião e as organizações sociais.
O livro também trata de outras questões, como o papel das mulheres na sociedade, papel que se alterou com a evolução. As mulheres, que antes saiam para caçar junto com os homens, perderam esta função com as inovações tecnológicas, passaram a exercer um papel mais doméstico na distribuição das funções entre homens e mulheres: enquanto os homens saem a caçam, as mulheres cuidam dos filhos. Se por muitas vezes pode-se perceber o papel submisso da mulher perante o homem, em muitas outras nota-se seu caráter manipulador, como foi quando Griselda conduziu Edward ao fatídico desfeixe.
Por que almocei meu pai é um livro indicado para quem busca de uma leitura descontraída e repleta de conteúdo didático. É uma leitura fluente — os personagens são plenamente conscientes de sua condição e de seu nível de evolução, além disso, desenvolvem reflexões tão complexas quanto as nossas, conferindo alto teor de comicidade à obra. Este livro abrange diversos níveis de leituras e, portanto, é recomendado a todos que desejam lançar um olhar crítico sobre a formação da sociedade.

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